Em 2003 o mercado editorial brasileiro comemorou exultante a edição da Lei 10.753, que pretendia criar a Política Nacional do Livro, mas que na prática promoveu uma renúncia fiscal para a tal cadeia produtiva do livro.
Na ocasião escrevemos à Presidência da República pedindo reconsiderações e publicamos um artigo intitulado A quem interessam os livros - ambos com o mesmo teor reproduzido abaixo. Embutida como "promessa de compensação" do setor livreiro, uma contribuição do percentual de faturamento do mercado editorial serviria para a realização de ações de estímulo à leitura. Essas contribuições - e por conseguinte as ações - nunca se materializaram.
O setor editorial brasileiro - que sempre teve como produto principal o livro didático, e como maior cliente o Estado - foi praticamente engolido por multinacionais, cedendo, assim, às pressões do capital: sua regra de sobrevivência é tão somente o retorno sobre o capital investido. Como os executivos da Varig, que saudavam a glória de um "monopólio privado" sem se preparar para a globalização, ou os Etruscos, para usar um exemplo mais sofisticado, que viam os Romanos como amigos, o mercado editorial foi se protegendo como pode, com suas Bienais custeadas pela Lei Rouanet, suas mercadorias sendo adotadas pelo MEC e os excedentes comprados pelos salvadores "Vale-Cultura" dos amigos secretos (ocultos aqui no Rio), mas sempre à custa do erário. O falecido João Ubaldo Ribeiro, pouco antes de morrer, fez um protesto sobre a forma como o setor editorial organizava seus eventos literários, quando denunciou a curadoria e a comercialização de livros na Flip. Pois agora, em mais uma teatralidade marketeira, em nome de salvar livrarias e a produção cultural brasileira - nunca eles próprios, que são os credores dessas mal administradas espeluncas - o setor envolve escritores e sociedade civil numa corrente natalina. Já recebi alguns vídeos e podcasts pedindo para dar livros de natal. Nos anos 1990 eu tratava o descaso com a formação de leitores como miopia em marketing. Hoje a palavra que me vem à cabeça é esperteza. — Compre um livro, mesmo que você não saiba o que tem escrito nele.
— Dê um livro, mesmo que a pessoa que vai recebê-lo seja um analfabeto funcional. Apenas para registro histórico - porque algum dia isso deverá ser estudado por alguém interessado no comportamento suicida de um setor produtivo - transcrevo aqui a carta que enviei ao presidente Lula em 2003. É claro que a resposta foi protocolar: "vamos ler e entraremos em contato".
Excelentíssimo Senhor Presidente da República Federativa do Brasil,
Sr. Luis Ignácio Lula da Silva.
Senhor Presidente,
O BNDES acaba de concluir um estudo sobre a cadeia produtiva do Livro no Brasil e talvez vossos assessores não tenham tido acesso a esse documento antes de Vossa Excelência sancionar a Lei da Desoneração do Livro.
Segundo foi veiculado pela Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presidência da República e pela Câmara Brasileira do Livro, a Lei extingue tributos que variam de 3,65% a 9,25%, numa renúncia fiscal da ordem de aproximadamente R$ 160 milhões — quase R$ 1,00 por pessoa. A expectativa é de que os livros fiquem mais baratos e, com isso, os brasileiros leiam mais.
Como brasileiro e profissional envolvido no incentivo à leitura, gostaria que me permitisse sugerir à Vossa assessoria que analisasse mais profundamente as seguintes questões:
1. O preço médio dos livros nas livrarias e mesmo nas Bienais — festas amplamente financiadas pelos governos e onde os industriais vendem os livros sem intermediários aos consumidores — está acima de R$ 40,00, com publicações custando pequenas exorbitâncias. Considerando-se, Excelência, os níveis de renda e o custo de vida dos brasileiros, poucos são os que podem “ler” o índice que se pretende aumentar de “1,8 livros por ano”.
Antes de avançar em outros conceitos, Excelência, talvez fosse interessante consultar o Departamento Nacional do Livro da Fundação Biblioteca Nacional – órgão do Ministério da Cultura, sobre o custo industrial do livro no país: até o ano 2001 era inferior a US$ 2.00, ou o equivalente a R$ 5,50.
2. Nas pesquisas que citam os termos entre aspas acima, não se fala da diferença entre “ler” e “possuir” livros. Os produtores de livros estão interessados na quantidade de livros per capita possuídos no Brasil e não nos que são lidos. Para usar uma expressão ideológica, o capital está tornando a informação em objeto de posse e propriedade. Não importa o conteúdo de um livro, desde que ele possa se tornar objeto a ser comercializado como coisa; fazer parte de uma coleção particular ou dar referências sobre o grau de sofisticação e inserção social de seu proprietário.
3. Esse dado, aliás, está citado no próprio comunicado da Secretaria de Comunicação: 73% dos livros estão concentrados em apenas 16% da população. Talvez, Excelência, um resultado perverso da Lei seja que os 20% mais ricos possam ter 80% dos livros.
4. No estudo desenvolvido pelo BNDES sobre o setor editorial surgem alguns dados curiosos, sobre os quais Vossa assessoria poderá discorrer com mais propriedade. Veja Vossa Excelência:
As maiores e principais editoras brasileiras pertencem a grupos estrangeiros, que são as verdadeiras donas desse mercado.O setor fatura perto de US$ 1 bilhão por ano (dado de 2002), metade dos quais diretamente do Ministério da Educação para equipar escolas públicas. Isso sem falar em compras de outras entidades amparadas pelo governo, mas que são classificadas como particulares. O caixa das Associações de Pais e Mestres das Escolas Públicas, por exemplo, ou do Sesi e do Sesc.Entre 1992 e 2002 foram produzidos e comercializados 3,3 bilhões de livros no Brasil, ou seja: 20 por pessoa, 70 por domicílio, 14 mil por escola e 595 mil por cidade. Aquela conta de 1,8 por pessoa é, de fato, um índice econômico.É mais barato lançar um livro já testado de um autor desconhecido americano ou europeu do que de um escritor brasileiro conceituado. Apesar da excepcional qualidade dos nossos escritores, são raros os que conseguem vender mais do que dez mil exemplares.
5. Desde que Euclides da Cunha lançou Os Sertões, há mais de cem anos, as tiragens iniciais no Brasil são de 3 mil exemplares, ainda que a população tenha quase quintuplicado nesse tempo.
Quanto reduziria o custo dos livros, Excelência, se as tiragens pudessem partir de 10, 30 ou 50 mil exemplares? Bastaria que cada cidade tivesse uma única biblioteca e ela recebesse um exemplar de livros selecionados e já teríamos uma tiragem inicial de 8 mil exemplares. Se cada escola pública tivesse um único exemplar de um determinado livro em suas estantes, as tiragens começariam de 240 mil volumes. Os preços despencariam. Haveria mais trabalho nas gráficas, nas fábricas de papel, nas transportadoras e muito mais gente teria acesso aos livros.
Mas, para isso, seria necessário estimular a leitura, e não a posse dos livros. Talvez fosse hora de entregar a política de livros e leitura ao Ministério da Educação, tirando-a da esfera dos editores, que há quase um século são os principais formuladores da política do Estado. Vossa assessoria poderá confirmar, Excelência, a que senhores (e interesses) servem os homens públicos ligados à gestão do livro no Estado Brasileiro, desde que a Cultura se divorciou da Educação. Não é exagero comparar: é como se a indústria farmacêutica assumisse a Previdência.
6. Até bem pouco tempo os livros eram indicadores apenas de uma “boa educação”, uma espécie de polimento que as melhores escolas davam à assim chamada “cultura humanística”. Recentemente, com a nova ordem econômica imposta pela informática — em que os cheques, o dinheiro e o comércio dão lugar a cartões inteligentes — a compreensão da leitura desponta como o maior fator de exclusão social da humanidade. O Governo Federal, através do MEC e de convênios com entidades como a OCDE, monitora esse gravíssimo problema social — que seria largamente minimizado através do amplo acesso aos livros na infância e adolescência, com sólidas políticas de incentivo à leitura. Só a leitura de literatura pode promover o letramento da população, Excelência.
7. Os R$ 160 milhões a que o Tesouro renunciou em benefício de alguns agentes da “cadeia produtiva do livro” poderiam fazer uma verdadeira revolução na educação brasileira, se fossem utilizados para comprar livros. Isso mesmo. Devolvê-los ao mercado, mas não através daqueles que os editores querem vender com listas que suas entidades de classe preparam com a tarja de “altamente recomendável”. O Estado poderia adquirir — por exemplo, em pregões pelo menor preço — livros de autores brasileiros indicados pelas escolas públicas de ensino fundamental. Afinal, na economia de mercado, o preço das mercadorias diminui pelo aumento da oferta, pela diluição dos custos fixos, pela ampliação da base de compradores.
8. Por último, Senhor Presidente, os técnicos da Secretaria de Ensino Fundamental do MEC, do Proler - Programa Nacional de Incentivo à Leitura, do MINC e alguns especialistas das Universidades brasileiras poderão ajudá-lo a compreender que os livros, sozinhos, não fazem leitores. É necessário preparar e instrumentar nossos professores e líderes comunitários para que se tornem agentes de leitura eficientes.
Na maioria de nossas escolas públicas, quem toma conta dos livros não são os que deveriam ter sido preparados para isso (o quê, aliás, não acontece), mas os que se sentem despreparados para reger turmas de alunos. Também não recebem melhores salários por isso, porque não há gratificação de regência para tomar conta de livros nas bibliotecas escolares, repletas de dicionários e enciclopédias defasados, quase sempre encapados e mantidos fora do alcance dos alunos.
Essas pessoas não são consideradas participantes da “cadeia produtiva do livro”. Não fabricam papel nem tinta, nem máquinas gráficas. Não conhecem autores, não freqüentam livrarias nem dividem um mercado de 1 bilhão de dólares. Apenas educam os brasileiros que poderiam mudar o destino dos próximos 170 milhões de habitantes se tivessem acesso ao conteúdo de alguns dos livros que 16% da população se orgulha de colecionar.
Quando essas pessoas chamam os livros de tesouro não estão dizendo metáforas.
Para finalizar, Senhor Presidente, mas não menos importante, seria interessante se Vossa assessoria lesse uma antiga crônica de Vosso amigo e ex-assessor Frei Beto. Trata de uma crueldade fiscal que faz com que os livros encalhados sejam queimados — ou vendidos como sucata de papel — para que não interfiram nos balanços das editoras nem depreciem o valor das obras.
Aliás, a devoção desse missionário admirável me traz à mente uma comparação interessante, que espero que não seja impertinente: durante toda a Idade Média, no período mais negro da história da humanidade, um grupo seleto de religiosos mantinha com zelo e dedicação as mais maravilhosas bibliotecas do mundo. Era a Igreja, que condenou os homens ao dito “período de trevas”.
As conquistas sociais, o desenvolvimento das ciências, as grandes descobertas e as invenções que nos permitem viver cada vez mais e melhor, começaram quando os livros saíram dos templos e conquistaram os olhos do povo, pela revolução de Gutenberg, que passou a produzi-los em grandes quantidades.
Esperando que essa carta chegue aos Vossos olhos, Excelência, sugiro a inversão dessa Lei para que o Estado promova a democratização da informação contida nos livros e não o subsídio ao capital estrangeiro e à formação de belíssimos acervos particulares.
Atenciosamente,
Jason Prado.
Diretor Executivo do
Leia Brasil – Organização Não Governamental de Promoção da Leitura.
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