É comum se dizer que para analisar uma situação, a melhor visão é a do observador externo.
No caso da vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil, a visão externa pode ser mais uma na compreensão do quadro que o fato produziu, mas não deixa de ser interessante a obra do jornalista australiano radicado em Londres, Patrick Wilcken.
Em seu livro, Império à deriva, Wilcken retrata o choque cultural que foi a vinda de uma tradicional corte européia para o que não passava de “um porto colonial de escravos”, perdido ao sul do Equador.
O jornalista, que colabora com resenhas e artigos relacionados ao Brasil para os jornais The Times Literary Supplement, The Guardian e Index on Censorship, escreveu um livro para inglês, brasileiro e todo aquele que se interessa em compreender melhor um pouco dessa parte da história ler.
Constam de sua biografia algumas passagens pelo Rio de Janeiro, a serviço de jornais ingleses. Isso explicaria por que um australiano – e membro da comunidade britânica – teria se interessado em pesquisar a história de dois países (e uma situação política) tão à margem da Europa e, portanto, dos interesses sócio-econômicos do “Velho Mundo”?
Eu certamente sempre estive interessado nos paralelos históricos entre a Austrália e o Brasil. Ambos, como você mencionou, são países distantes que se desenvolveram como partes do império colonial europeu. Apesar do Brasil e da Austrália, por razões complexas, terem se tornado muito diferentes, ainda mantêm muitas similaridades. Quando primeiro estive no Brasil, dez anos atrás, me senti muito confortável com a atitude brasileira mais informal, mais casual perante a vida, com a imensa expansão do país e com a atitude ambivalente em relação às antigas forças colonizadoras.
Eu também senti que havia uma genuína falta de compreensão e muito poucos documentos históricos sobre a evolução do Brasil no período colonial. A estada da corte portuguesa no Rio foi um evento extraordinário, virtualmente desconhecido do público de língua inglesa, e que pareceu pronto para ser explorado.
As vésperas dos 200 anos de um acontecimento que mudou nossa história, ainda são poucas as pesquisas publicadas por brasileiros sobre a chegada da família real, e quase nenhuma ficção. A que você atribui isto? Este fato dificultou suas pesquisas no Brasil?
A chegada da Família Real portuguesa foi tradicionalmente percebida como um prelúdio para o acontecimento principal: a independência. Como consequência, há muito mais conhecimento sobre D. Pedro e sobre os acontecimentos ocorridos imediatamente após a saída da Família Real. Entretanto, isto está mudando e para a minha pesquisa fui auxiliado por um grande número de estudiosos brasileiros e portugueses sobre a estada da corte no Brasil. Espero que muitos outros estudos sejam publicados durante o bicentenário.
A “história oficial” do Brasil tende a glamourizar a chegada da Família Real, a abertura dos portos e a permanência da corte no Rio. A leitura de seu livro dá outra visão, apontando outros motivos e consequências da transferência da corte para este lado do Atlântico. Essa “impressão” nasceu de suas leituras dos documentos pesquisados, ou os documentos vieram corroborar sua “leitura” da cidade do Rio de Janeiro?
As razões por trás da viagem da corte portuguesa são complexas. Em grande parte, a corte foi manipulada pelos britânicos, a superpotência da época. Talvez esta perspectiva não tenha recebido a merecida atenção no Brasil. Uma vez que a corte tenha se estabelecido no Rio, ela se encontrou numa posição de crescente incerteza. Algumas das mais glamourosas versões sobre a estada da corte no Rio são pura propaganda. Havia muitas outras pessoas escrevendo na época que descreveram uma corte pobre e provincial, não certos da raison d’etre no Rio.
Como surgiu o título “Império à deriva” (Empire Adrift )?
Eu estava tentando pensar num titulo que englobaria a idéia de uma grande família real européia separada da metrópole e as implicações que isto teria num império que estava desmoronando.
O título tem a intenção de afirmar que o império português estava à deriva tanto fisicamente – sua corte sendo transferida para o Rio - quanto metaforicamente, perdido, sem objetivo.
Existem duas figuras marcantes em seu livro. O primeiro é Lord Strangford, figura dúbia com interesses quase sempre não bem definidos. Qual a importância dele para a definição da política Portugal/Brasil diante da Inglaterra? Por exemplo, cidadãos ingleses tinham privilégios que feriam a soberania do Império Português, como o direito a serem julgados por um juiz britânico.
Lord Strangford era típico da sua época. Conforme havia dito anteriormente – os britânicos tinham uma nação poderosa,
manipuladora dos acontecimentos mundiais, assim como os EUA fazem hoje. Strangford, como um representante britânico, utilizava a realpolitik primeiro para garantir que os portugueses fugissem dos franceses, e depois para assinar um acordo que favorecesse a Inglaterra.
Os ingleses asseguravam os seus privilégios, similares àqueles que gozavam no seu próprio império, conduzindo o Brasil para dentro da sua esfera informal de poder.
Mas com o fim das guerras napoleônicas, Strangford perdeu influência. Os portugueses já não necessitavam da proteção britânica contra os franceses, e estavam livres para almejar uma política estrangeira mais multilateral.
Outro é o português Marrocos e sua inicial rejeição e depois total adaptação ao Brasil. Ele é simbólico, na relação dos portugueses que aqui chegaram com a nova terra?
Marrocos simboliza alguns dos muitos portugueses que ficaram depois que a corte deixou o Rio; a maior parte da corte sofreu um choque quando chegou ao Rio, então somente um porto colonial de escravos. Mas com o crescimento da cidade e com a adaptação a um tipo diferente de vida, alguns até vieram a gostar do país. Ele também simboliza a total
reversão de valores entre a pátria mãe e a colônia. Quase no final da estada da corte, o pai de Marrocos ficou pobre em Lisboa, enquanto Marrocos ficou relativamente rico no novo mundo.
Ao fazermos esta edição surgiram várias visões da figura de D. João: um bufão glutão, um covarde patético e um gênio estratégico e político. Qual é a sua?
Ao que me parece estas visões são exageradas: Dom João não era um idiota, mas também não era um gênio. Ele foi criado num limitado, e de alguma forma bizarro, mundo da Família Real portuguesa.
Não era para ele ter sido rei, então se achava despreparado.
Ele seguia amplamente o que os seus conselheiros ditavam, mas considerava difícil tomar decisões e procrastinava constantemente.
Ele teve sorte que a sua conduta era apropriada à política complexa da época. Há referências sobre as suas enormes refeições e o seu gosto por aves. Mas há de se tomar cuidado – havia muita propaganda contra a monarquia na época e tentaram retratá-lo da pior maneira possível.
Para terminar, uma reflexão de um pesquisador que nasceu numa ex colônia (Austrália) e mergulhou tão fundo na história de outra ex colônia do outro lado do mundo.
A história é fascinante, de qualidade épica. Muito tem sido escrito sobre o extraordinário começo da Austrália como uma colônia penal. (Interessantemente, isto estava obliquamente conectado ao Brasil. As primeiras embarcações de
prisioneiros costumavam aportar no Rio para embarcar mercadorias no caminho para Botany Bay).
A história da corte portuguesa é também de uma maravilhosa narrativa, que me cativou desde o começo, e eu espero que tenha conseguido passar meu entusiasmo para os outros através do livro.
Entrevista concedida a Ana Claudia Maia em 2007 para a edição “A Fundação do Brasil”, comemorando a Chegada da Família Real ao Brasil.
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